Sem combate ao racismo estrutural e institucional, políticas públicas são conta-gotas, afirma coordenador do Kizomba

Em entrevista à Focando, Cristovão Luiz Gonçalves, coordenador do “Kizomba, Na Rota da Ancestralidade”, fala sobre o Mês da Consciência Negra e as atividades do projeto que resgata a história afrodescendente de Cuiabá

Michael Esquer
7 min readNov 20, 2020
Foto: Arquivo Pessoal

O movimento negro já alcançou várias conquistas nos últimos anos, mas ainda há muito o que se fazer e se conquistar. É o que afirma o coordenador geral do “Kizomba, Na Rota da Ancestralidade” e Coordenador do Museu de Imagem e Som de Cuiabá (Misc) Cristovão Luiz Gonçalves, Idealizador do Movimento de Inteligência Negra (MIN) de Cuiabá e membro fundador da lavagem das escadarias da Igreja do Rosário, conquista importante na luta pela ocupação do espaço das religiões de matriz africana da capital.

“Estamos engatinhando para algo que realmente seja sensato por aquilo que nós construímos dentro desse país. A gente teve alguns avanços, mas isso não importa no sentido de que enquanto não tiver um combate ao racismo estrutural e institucional, você ainda vai ver propagandas de Cuiabá, que tem uma influência negra e indígena muito forte, onde 90% das inserções são de pessoas brancas. Nós temos muito para se fazer, já conquistamos, mas ainda temos muito para ser feito, para se conquistar com políticas públicas para várias áreas do conhecimento”, pontua Cristovão.

Em entrevista à Agência Focando, Cristovão diz que apesar deste não ser um ano de comemorações, deve ser o de combustível para novas mudanças. “Com a pandemia, muitos irmãos e irmãs tombaram no combate pela covid-19. Quando nós vemos a discriminação, o preconceito sair naturalmente da boca de muitos, isso é triste, não temos muito pra se comemorar. Mas Oxalá reservou os grandes desafios somente aos grandes homens e às grandes mulheres. Nelson Mandela depois de ficar 30 anos aproximadamente encarcerado, ele disse isso, e é uma verdade. É nesses momentos nublados que você se faz centelhas de luz em forma de axé”.

Além explicar a relação entre o “Kizomba, Na Rota da Ancestralidade” — projeto que há dois anos promove o resgate e valorização da história, cultura e tradição da presença negra de Cuiabá, historicamente apagadas pelo racismo estrutural — e o Mês da Consciência Negra, Gonçalves defende a importância do combate ao racismo estrutural e institucional para a promoção da igualdade racial. “São os movimentos, são os nucleos de pesquisa, são o movimento negro que desenvolve essas políticas [públicas]. Mas se você não combate o racismo estrutural e institucional essas políticas vão durar a eternidade, é conta-gota”, diz.

Cristóvão defende o combate ao racismo estrutural e institucional para a promoção da igualdade racial | Foto: Arquivo Pessoal

Confira a entrevista completa:

Com qual objetivo surgiu o projeto “Kizomba, na Rota da Ancestralidade”?

O objetivo maior do Kizomba, Na Rota da Ancestralidade é dar visibilidade para o quilombo urbano esquecido, como o próprio bairro Quilombo, ou quilombinho. Nós temos a praça da Mandioca, um dos primeiros pelourinhos, o Quartel dos Capitães Generais, Conde das Azambujas, descendo nas proximidades da Ricardo Franco tinha a Rua das Pretas. Aí tinha o oratório, uma das primeiras capelinhas onde se rezava a missa antes da igreja São Benedito. Seguindo a rota da ancestralidade, tem o Buracão Grande, que é a lenda da alavanca de ouro, onde os mineiros africanos trabalhavam com ouro. A igreja de São Benedito, aos arredores tinha 90% das mulheres negras que moravam ali e compravam. Então na igreja de São Benedito tinha a Irmandade do Rosário e a Irmandade de São Benedito que eram que davam toda assistência, seja para quem era do pelourinho, seja para os doentes que faleceram para toda essa comunidade negra que vivia nessa espacialidade. Tem a praça da Mãe Preta, que é um portal para o tanque do Baú Sereno, onde as pessoas tomavam banho, iam lavar roupas, iam buscar água para abastecer as casas dos senhores.

O que é a Rota da Ancestralidade?

A rota da ancestralidade é a nossa dívida com os nossos ancestrais. É o nosso elo perdido entre nós e a nossa ancestralidade. O “Kizomba, Na rota da Ancestralidade” tem o objetivo de dar visibilidade e também a valorização do patrimônio material e imaterial de Cuiabá que tenha essa influência africana e que está invisível nesse território, que é preto, africanizado, mas esquecido.

Qual público alvo que o projeto visa para participar do evento?

O público-alvo, primeiramente, são seus moradores. Já começamos a desenvolver um trabalho com eles de gravações de áudios e vídeos, que são os “grios”, os contadores de histórias. Então têm esses moradores do centro e arredores, na faixa de 100, 70, 80 anos. Também tem professores, alunos, pesquisadores, todos aqueles que têm sensibilidade em entender que o Centro Histórico de Cuiabá tem influência e pertencimento africano. Esse é o público-alvo, desde moradores da rua até pessoas que vem da universidades para pesquisar. Todos estão convidados.

Em um ano em que denúncias de racismo, intolerância religiosa e injúrias raciais aumentaram em Mato Grosso, quais acredita serem os desafios de pensar o resgate da cultura afrodescendente de Cuiabá?

O primeiro passo para isso é desenvolver um trabalho de políticas públicas para combater o racismo estrutural e institucional, começar com a base da escola, da pré-escola à universidade. Antes você tinha uma escola que ensinava o ensino religioso mas só de uma vertente, já que o Brasil é laico, você tinha que estar respeitando essa laicidade. Então, em 2003 nós tivemos lei 10639 que obriga o ensino da História Africana e dos africanos no Brasil.

O que podemos comemorar nesse Mês da Consciência Negra?

Nós, enquanto membros de religião de matriz africana, ao acordarmos já comemoramos o sopro de vida, comemoramos ao despertar, agradecemos ao Sol, agradecemos a Lua, agradecemos a cachoeira e ao mar pelo sopro de vida. Agora, é óbvio que com a pandemia, muitos irmãos e irmãs tombaram no combate pela covid-19, realmente não temos muito pra se comemorar. Para nós de religião de matriz africana que estamos diretamente ligados à força da natureza, quando nós vemos os animais, as onças, os pássaros sendo devorados vivo pelo fogo, como vimos esse ano, realmente não temos o que comemorar. Quando nós vemos a discriminação, o preconceito sair naturalmente da boca de muitos, isso é triste, não temos muito pra se comemorar. Mas Oxalá reservou os grandes desafios somente aos grandes homens e às grandes mulheres. Nelson Mandela depois de ficar 30 anos aproximadamente encarcerado, ele disse isso, e é uma verdade. É nesses momentos nublados que você se faz centelhas de luz em forma de axé.

Como a população negra e afrodescendente integra a história da formação histórica de Cuiabá?

Os afrodescentes se integram à história, à formação histórica de Cuiabá, quando temos uma educação de qualidade, as reparações afirmativas é fundamental pra isso, para que eles tenham esse conhecimento da sua cultura, da sua arte, da sua filosofia, da sua literatura, da sua história, do seu patrimônio material e imaterial da valorização do ser humano. Para o afrodescendente se sentir integrado nessa formação histórica de Cuiabá, ele precisa ter conhecimento, e o conhecimento vem através das ações afirmativas, porque ele pode ser um músico, mas se ele quiser ele pode fazer também engenharia, medicina, ele pode fazer arquitetura, geografia, ele pode fazer o que ele quiser fazer. Tudo isso faz parte desse contexto de empoderamento, pra ele [negro] se sentir integrado, para ela se sentir dentro desse contexto da história e da formação histórica de Cuiabá, ele precisa disso.

Como você avalia as conquistas do movimento negro da capital nos últimos anos?

As conquistas do movimento negro na capital nos ultimos anos são validas, é óbvio. Estamos engatinhando pra algo que realmente seja sensato por aquilo que nos construimos dentro desse país. Nós temos a Lei 10639 [que versa sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana], temos o Conselho da Promoção da Igualdade Racial, municipal e estadual, temos a Superintendencia da Promoção da Igualdade Racial, temos, na Organização dos Advogados do Brasil (OAB), a Comissão da Igualdade Racial, que trata justamente desses assuntos, o negro tem cota dentro dos editais, no que diz respeito ao trabalho. Ou seja, a gente teve alguns avanços, mas isso não importa, no sentido de que enquanto não tiver um combate ao racismo estrutural e institucional, nós ainda vamos ver propagandas de Cuiabá, que tem uma influencia negra e indigena muito forte, onde 90% das inserções são de pessoas brancas.

Nós temos muito para se fazer, já conquistamos, mas ainda temos muito para ser feito, para se conquistar com políticas públicas para várias áreas do conhecimento. Por exemplo, quantas mulheres negras, assumidas com a sua negritude, foram eleitas em Cuiabá, quantos homens negros, assumidos com a sua negritude, foram eleitos em Cuiabá, na Camara dos Deputados, Senadores? Por esses pressupostos, ainda temos muito pra se fazer e se conquistar.

Como você avalia as políticas públicas do município voltadas à promoção da igualdade racial e ao enfrentamento ao racismo?

São os movimentos, são os nucleos de pesquisa, são o movimento negro que desenvolve essas políticas, que tem que ser instaladas para surgir como reflexo do espelho. Você manda pra lá e aí você tem esse reflexo. Mas se você não combater o racismo estrutural e institucional essas políticas vão durar a eternidade, é conta-gota. Já tivemos avanços, por exemplo, quando voce tem uma Lavagem da Escadaria do Rosário e está no calendário da cidade, isso já é um avanço, é uma política publica, onde voce pode expressar culturalmente a sua religião. Como você tem a Marcha pra Jesus, voce tem a Lavagem da Escadaria do Rosario, com toda a religião de matriz africana. Isso faz parte de políticas publicas.

Quando voce tem mulheres e homens negros pilotando, assumindo postos como de vereadores, deputados, senadores, isso são políticas publicas. Até ontem você não tinha recurso dentro dos partidos políticos, tanto para mulheres negras quanto para homens negros, tudo isso faz parte de políticas publicas. Mas você tem que ir pro enfrentamento, quebrar essa barreira do racismo estrutural e institucionalizado para poder galgar esses espaços de comando e poder.

*Publicado originalmente na Agência Focando

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Michael Esquer

Bacharelando em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (sand. UDFJC/COL) “Quem não cuida de si que é terra, erra” 🏳️‍🌈