Entre duas realidades

Com taxa de letalidade menor que a do Brasil, Colômbia já completa 4ª semana de quarentena

Michael Esquer
7 min readAug 30, 2020

“Vocês não poderão mais sair do hotel. Quando quiserem comprar alguma coisa nos avisem, que nós vamos revezando as saídas.” Assim fui avisado pela gerente do hotel que estou hospedado em Bogotá, na manhã de um sábado, sobre a quarentena obrigatória que tinha acabado de ser decretada pelo governo colombiano. A medida foi anunciada no dia 21 de março e passou a entrar em vigor já no dia 23 de março. A partir desse dia, restringiu-se por completo a saída e circulação de pessoas em todo território nacional, com a exceção de pessoas que prestam serviços que são considerados bens de primeira necessidade, como pessoal médico, farmácias e supermercados.

Lojas, bares, shoppings, escolas, universidades, aeroportos e todos os serviços que não são considerados essenciais atualmente estão suspensos. Os estabelecimentos gastronômicos, que optaram por continuar funcionando tem permissão para faze-lo apenas na modalidade de entrega a domicilio, sujeito a um regulamento de recomendações sanitárias imposto pelo Ministério da Saúde aos restaurantes, domiciliários e pessoas que utilizam esse tipo de serviço.

Para fazer compras, apenas uma pessoa por família pode sair de casa, e especificamente em Bogotá, a prefeitura também adotou nesta semana o “pico y género”, medida que restringe a circulação de pessoas de acordo com o gênero. Dessa forma, dentro das saídas permitidas pelo decreto, aos homens fica permitido mobilizar-se nos dias ímpares, as mulheres nos dias pares e para a comunidade transsexual, a restrição se aplica de acordo com a identidade de gênero.

Recentemente fui no mercado e na entrada as pessoas, todas de máscara, faziam fila com uma distância de 1 metro de distância umas das outras. Os guardas controlavam a entrada e a saída com uma garrafa de álcool em gel que aplicava na mão de todos que entravam. De 5 em 5 íamos entrando à medida que os corredores iam se esvaziando. Um cenário bastante militar, mas que pelo contexto, ninguém reclamava.

Desde o início da quarentena, os mercados são os únicos lugares onde você ainda consegue matar um pouco da saudade da “vida normal” e assim como é para mim acredito que para muitas pessoas o sentimento lá dentro também seja de menos solidão, ainda que por pouco tempo, porque na volta para casa o cenário de filme entra em cena novamente. Com exceção dos postos de gasolina, pelo menos no meu bairro, tudo está fechado e as poucas pessoas que se encontram caminhando ou estão indo ou estão voltando desse mercado.

Registro feito em um dos mercados que permanecem abertos durante a quarentena obrigatória na Colômbia. | FOTO: Arquivo Pessoal

Cheguei na Colômbia no dia 12 de fevereiro, data em que o coronavírus ainda não tinha chegado nem a uma centena de casos na Europa, e na América do Sul, o seu primeiro caso ainda não havia sido registrado. Nessa época ainda soava exagero comentar sobre a preocupação com a possível chegada do novo vírus aqui no eixo sul. Mas apesar do deserto de casos na América naquele mês, no aeroporto de Bogotá já era possível perceber uma quantidade razoável de pessoas que optavam pela utilização de máscara, e eu era um delas.

Aqui, o primeiro caso do novo coronavírus foi registrado no dia 6 de março, 10 dias após o 1º caso ter sido registrado na América do Sul — em São Paulo no dia 25 de fevereiro, o Brasil registrava o primeiro caso da América Latina — e três semanas após eu ter chegado no país. Se tivesse comprado a passagem um pouco mais tarde, talvez não tivesse conseguido entrar no país. Me lembro que no dia seguinte à notícia, já era possível perceber a diferença no olhar das pessoas que caminhavam nas ruas. Se antes, talvez pela subestimação do perigo, era estranho usar máscara agora era estranho encontrar alguém que não a estivesse no mínimo cobrindo a boca.

Diante do risco do avanço da pandemia, uma das primeiras medidas do governo colombiano foi a de submeter a quarentena obrigatória todos os passageiros internacionais que tinham como origem a Ásia e a Europa, continentes que até então tinham a maior quantidade de pessoas contaminadas.

Com o aumento dos casos e para se prevenir de mais contágios externos, alguns dias depois passou-se a restringir por completo a entrada de passageiros desses países em território nacional. Até que no dia 16 de março, quando o total de casos do novo coronavírus no país já contabilizava um total de 34, o Governo da Colômbia decidiu proibir a entrada de todos os cidadãos estrangeiros no país. Com isso, todas as fronteiras aéreas, terrestres e fluviais do país se fechavam.

Como novas ações para conter o avanço da pandemia estavam sendo tomadas quase todos os dias em um ritmo vertiginoso, e na Europa começavam a explodir exponencialmente o número de pessoas com o vírus, já esperava que mais cedo ou mais tarde a Colômbia anunciaria uma quarentena, e assim foi. No dia 21 de março, com 306 casos confirmados do Covid-19, era anunciado o decreto que colocava sob quarentena preventiva obrigatória todo a população que se encontrava em território colombiano. Em resumo, da confirmação do primeiro caso, no dia 6 de março, até o isolamento total do país se passaram apenas 17 dias.

Em Bogotá, a minha rotina que antes era de turista e estudante, com o início da quarentena se resumiu a dormir, acordar, ler jornais, sites de notícia, se informar sobre a pandemia e ver se mais alguma medida foi tomada para saber se não estou infringindo alguma. Do meu quarto vou para cozinha, almoço, da cozinha volto para o quarto e quando me canso visito as minhas vizinhas de alojamento que moram no meu andar.

Com estabelecimentos fechados, diversas ruas de Bogotá seguem parcialmente vazias. | Foto: Arquivo Pessoal

Duas amigas, uma da Bolívia e outra do Brasil, que assim como eu também estavam de intercâmbio quando tudo isso aconteceu. Com a suspensão das aulas presenciais em todo o país, nossas aulas estão sendo ministradas em modalidade virtual.

No dia 4 de abril, quando faltavam apenas 7 dias para o fim da quarentena, tivemos a notícia da sua ampliação por mais duas semanas. A decisão foi tomada após reunião do presidente Ivan Duque com epidemiólogos e infectologistas para realizar um balanço dos resultados das primeiras semanas de isolamento. Mesmo com resultados positivos em comparação com países europeus, e até mesmo com países vizinhos da América Latina que tardaram em tomar medidas mais radicais quanto ao avanço da pandemia, ficou decidido pela ampliação até o dia 27 de abril.

Isso, segundo o presidente, principalmente devido a necessidade de um número maior de testes e exames do coronavírus e também pela necessidade de mais tempo para obter resultados concretos do isolamento coletivo.

No entanto, se levamos em conta a quantidade de casos confirmados e o número de mortos confirmados pelo Covid 19, o resultado da quarentena até agora tem sido positivo. Com 3233 casos e 144 mortes, a Colômbia atingiu uma taxa de letalidade de 4,4%, número abaixo da média mundial que é de 6,7%, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde. A notícia é boa mas preocupa quando faço a mesma análise no Brasil, que com 30961 casos confirmados e 1956 mortes registradas até hoje, segue acompanhando a média mundial com um taxa de letalidade de 6,3%.O que isso significa? Talvez seja cedo para dizer, mas sem dúvida, escancara o resultado dos esforços desprendidos por diferentes governos contra um mesmo problema.

A Colômbia, faz parte de um grupo de países da América do Sul que diante do risco eminente adotaram as medidas radicais que vários países europeus não tomaram, e hoje se arrependem, para conter a evolução do contágio da pandemia. O Brasil, faz parte de outro grupo, solitário, que negando o óbvio e arriscando-se pelo improvável, tem um presidente que até o mês passado chamava de “gripezinha” um vírus que em menos de 6 meses já tinha matado mais de 70 mil pessoas no mundo todo.

Antes com o discurso de relativização da gravidade da doença e agora com a relativização dos seus danos sanitários, o Governo Brasileiro só ordenou o fechamento de suas fronteiras há pouco mais de uma semana, no dia 29 de março, quando o país já contabilizava um total 2000 casos confirmados da doença.

Na tentativa de justificar o injustificável, inflamados pelo discurso do pânico, alguns falam de saques a supermercados, falta de abastecimento de alimentos e medicamentos, derrocada da economia e outras tragédias que podem acontecer com a restrição de mobilidade que tem sido adotado por países na Europa, Ásia e América do Sul.

Mas a verdade pelas cidades é outra. Em Bogotá, de acordo com dados da prefeitura, campanhas de arrecadação de alimentos já atenderam mais de 280 mil famílias em situação de vulnerabilidade e que dependiam do trabalho diário para sobreviver. Atividades de grupos de voluntários, doações de kits de limpeza, ações que têm mostrado que a solidariedade humana tem prevalecido nesse momento difícil e que melhores são os resultados com o apoio de líderes comprometidos com a vida e a dignidade humana.

Daqui há uma semana o Brasil completará 2 meses da chegada do coronavírus em território nacional. Com mais de 30 mil casos e quase 2 mil mortes o governo brasileiro segue adotando um discurso negacionista das evidências científicas. Ao priorizar minimizar os danos à economia durante uma crise humanitária se abstém da responsabilidade de administrar a crise que vive e cria uma fórmula que não enxerga outra solução para o povo brasileiro que não seja a própria sorte entre escolher morrer de fome ou de coronavírus.

Ninguém sabe até quando os efeitos da pandemia que começou junto com ano 2020 deve durar. Mas a verdade, é que ela segue se expandindo e desafiando a maneira que líderes e governantes do mundo todo têm encontrado de conter, ou agravar, as fissuras sociais deixadas por onde ela passa.

No Brasil, além de descortinar mais uma vez a desigualdade social, a disseminação da Covid-19 também desnudou, naquele que deveria estar coordenando respostas para a situação, o sadismo e a total incapacidade de compreender a realidade.

--

--

Michael Esquer

Bacharelando em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (sand. UDFJC/COL) “Quem não cuida de si que é terra, erra” 🏳️‍🌈