Com maior parte dos focos localizados em propriedades privadas, Mato Grosso registra recorde de incêndios da década

Reportagem da Focando mostra um aumento contínuo do número de incêndios no estado desde 2018; população teme os impactos do avanço descontrolado das chamas e fala em crime ambiental

Michael Esquer
10 min readOct 19, 2020
Mato Grosso registra pior cenário de queimadas da última década e efeitos são sentidos em todo o estado — Poconé, MT. Foto: Gustavo Basso/NATIONAL GEOGRAPHIC

De todos os estados do país, Mato Grosso é o que registrou o maior número de focos de incêndios em 2020. A região, que abriga os biomas Pantanal, Cerrado e Amazônia, foi a mais atingida pelos incêndios deste ano, alcançando também o número recorde de focos de calor dos últimos dez anos. As informações são resultado de um levantamento da Agência Focando, feito com base em dados do Programa Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto Centro Vida (ICV).

Até setembro de 2020, Mato Grosso já havia registrado 39.918 focos de calor em todo o seu território, um aumento de 45% em relação ao mesmo período de 2019, com 27.553. Desde 2018, o número de incêndios tem crescido exponencialmente. Além disso, os dados de satélite revelam que a maior porcentagem dos focos, 54%, foram registrados em propriedades rurais com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR).

O levantamento da Focando constatou que, nos últimos 10 anos, os focos de calor no estado de Mato Grosso nunca registraram quedas contínuas. De 2011 a 2017, período em que esses registros mais oscilaram, os números nunca ultrapassaram a casa dos 30.000. O curto período entre 2017, com 25.996 focos, e 2018, com 15.487, foi o único marcado por uma redução significativa nos números de focos de calor: uma diminuição de 40%. No entanto, o período que sucede esse intervalo revela uma escalada sem precedentes nesses números. Somados 2019, com 27.553 focos, e 2020, com 39.918, registrou-se um aumento de 157% no número incêndios em relação ao mesmo período de 2018. Este ano, atingimos, pela primeira vez, um índice superior à marca de 30.000 focos.

A capital do Pantanal mato-grossense torna-se o epicentro das chamas

A fumaça das queimadas invadiu a comunidade de Camiéle Benedita, quilombola residente do município de Poconé, capital do Pantanal mato-grossense e cidade que mais registrou focos de incêndios em Mato Grosso, este ano.

“Em 25 anos da minha existência em terras quilombolas, esta é a primeira vez que presencio um imenso crime ambiental desta proporção. Me sinto impotente, de mãos atadas”, conta Camiéle, sobre o avanço das chamas na cidade em que nasceu e cresceu e de onde saiu apenas para se graduar.

Com o aumento exponencial do número de queimadas no Pantanal, o município de Poconé sofre com os impactos da maior tragédia ambiental da história do bioma. Até setembro, 18.259 focos de incêndios haviam sido registrados no bioma pantaneiro: um aumento de 201% em relação ao mesmo período de 2019, quando foram registrados 6.052 casos, e o maior valor acumulado desde que o Inpe começou a monitorar a região, em 1988.

Do número total de focos registrados no Pantanal, a maior parte, 11.284, cerca de 62%, foram registrados em solo mato-grossense. Do número total de focos da parte mato-grossense do bioma, a maior parte, 4.403, cerca de 39%, foram registrados no município de Poconé, o que também corresponde a cerca de um quarto do número total de incêndios registrados em toda a extensão do Pantanal. Uma realidade que, em contraste com 2019, quando Poconé havia registrado apenas 152 focos de calor, colocou a cidade como a primeira entre as que mais queimaram no estado, em 2020.

“Já houveram queimadas, mas não como essas que estão acontecendo no momento. Sempre moramos em terras quilombolas, produzindo, criando filhos, netos, bisnetos, vivenciando cada período, cada ciclo da natureza, e agora se deparar com algo que está além da força física é a maior angústia de nós quilombolas. Não sabemos quando tudo irá voltar ao normal ou se vai haver ainda o normal. Por agora o sentimento é somente de desespero, dor, angústia e sofrimento”, relata Camiéle.

Segundo a quilombola, o avanço das queimadas fez com que muitas famílias se vissem forçadas a deixarem suas casas para não serem atingidas pelo fogo. Camiéle relata que ribeirinhos, quilombolas e comunidades tradicionais que vivem na região foram afetados diretamente pelas queimadas e que a reestruturação dessas famílias levará anos.

No norte do estado, os indígenas tentam conter o avanço das chamas

“Realmente, nós estamos preocupados com isso, porque nosso medo é perder todos nossos recursos naturais”, relatou à reportagem o cineasta indígena e morador do Alto Xingu, Takumã Kuikuro. A Focando procurou Takumã depois de ter verificado no Programa Queimadas, do Inpe, que o Parque Indígena do Xingu também havia sido tomado por incêndios. O território indigena, que está localizado na Amazônia mato-grossense e abriga mais de 16 povos, registrou 1.204 focos de incêndio esse ano, 918 deles apenas em setembro.

“A gente percebeu através dos brigadistas indígenas, eles estão sempre alertando as comunidades indígenas de cada aldeia sobre o fogo. Eles são em pouco número e têm várias aldeias onde eles tentam combater o fogo. A fumaça está provocando mais doenças, aldeias aqui vizinhas passaram tudo mal por causa da fumaça, isso está piorando cada vez mais a comunidade indígena aqui do Xingu”, relata Takumã.

Imagem: Michael Esquer/AGÊNCIA FOCANDO

Diante da situação dramática do Parque, o cineasta organizou uma campanha de financiamento coletivo na internet para arrecadar fundos e ajudar os brigadistas e voluntários que estão atuando na linha de frente contra o fogo. “A gente sabe a importância do meio ambiente, da terra onde nós sobrevivemos, por isso que a gente tem que ajudar, a gente não pode só ficar dependendo dos brigadistas indígenas”, disse Takumã.

Para o cineasta, apesar do empenho dos brigadistas indígenas, o combate ao fogo é complexo, já que estão em pouco número para a quantidade de aldeias que precisam ser atendidas, além da falta de estrutura. Takumã conta que a ajuda do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Fundação Nacional do Índio (Funai) não tem sido suficiente: “Tem Ibama com parceria com a Funai, mas a Funai tá dependendo só do Ibama, e o Ibama não é tão grande assim. O grupo de brigadistas indígenas é pequeno, e é isso que tá tentando dar apoio mas não tá dando conta”, enfatiza a liderança dos Kuikuro.

Na capital do estado, o céu azul dá lugar a nuvens de fumaça

As queimadas mudaram até mesmo o cenário da capital mato-grossense, Cuiabá, que, mesmo há quilômetros de distância dos grandes focos de incêndio registrados, amanheceu diversas vezes encoberta por extensas nuvens de fumaça, vindas de diferentes pontos do estado.

“A gente sempre sentiu o efeito da fumaça, aquele cheiro, aquela angústia, aquela falta de ar e como está em época de queimada a gente não estava ligando muito, mas quando foi um dia de manhã que eu acordei, o céu estava nublado, eu achando que era chuva mas não, era fumaça tóxica”, conta à reportagem Greici Pereira de Nascimento, agente de saúde que trabalha na capital.

Segundo a agente, que trabalha no bairro Pedregal, região leste de Cuiabá, a fumaça ocasionou um aumento no número de pessoas que solicitam o serviço de agendamento de consultas e visitas médicas. Greici revela que a maioria dos pedidos são relacionados a problemas respiratórios provocados pela fumaça.

Outra situação ocasionada pela fumaça, descrita por Greici, é a possibilidade do agravamento da pandemia: “Muitas vezes, pessoas que adquiriram coronavírus, que estavam com o vírus do Covid-19, achavam que na verdade era só o efeito da fumaça e não procuraram um médico e isso comprometeu o pulmão de muita gente, porque acabaram tendo mais dificuldade para se curar”, relata a agente de saúde.

A fumaça conseguiu encobrir até o céu da capital esse ano — Cuiabá, MT. Foto: Maria Elias/FOCANDO

A fumaça também foi sentida pela população que vive na região metropolitana da capital: “Eu nunca presenciei tanta poluição como a que está tendo por causa dessas queimadas. Tem dia que eu acordo de manhã já me sentindo sufocada, com o olho ardendo, e eu não tenho nenhum problema de saúde, eu fico imaginando como deve estar sendo pra quem tem. Passar por esse período que a gente está passando está sendo insuportável”, diz Lucélia Brito, moradora do bairro Cristo Rei, região metropolitana de Cuiabá.

Maior parte dos focos de calor estão localizados em propriedades privadas

Utilizando os dados de satélites do Monitor de Queimadas do ICV, a Focando realizou um levantamento sobre a localização dos incêndios em Mato Grosso, este ano. A análise, que considerou o intervalo de janeiro a setembro, chegou à conclusão de que a maior parte dos focos de calor, 54%, foram registrados em propriedades rurais inscritas no CAR. A segunda maior concentração de focos, 24%, foi encontrada em Áreas Não Cadastradas, seguida pela concentração de focos em Terras Indígenas, com 14%. As menores incidências de focos de calor foram detectadas em áreas urbanas, 0.1%, Unidades de Conservação, 2%, e Assentamentos, 4%.

À reportagem, a coordenadora do Programa de Transparência Ambiental do ICV, Ana Paula Valdiones, disse que, apesar de não ser possível afirmar se a origem de um foco de incêndio tem caráter doloso ou culposo, é fato que a maior parte deles, no estado de Mato Grosso, está “atrelada” ao imóvel rural: “O que a gente tem visto é que grande parte do fogo tem se originado nos imóveis rurais e isso pode estar relacionado ao mau uso do fogo”, revela Ana Paula.

No dia 22 de setembro, sem apresentar evidências e contrariando os dados do Inpe e do ICV, o presidente Jair Bolsonaro afirmou, em discurso na Assembléia Geral da Organização das Nações Unidas, que o Brasil é “vítima” de “brutal campanha de desinformação” sobre a Amazônia e Pantanal. “Nossa floresta é úmida e não permite a propagação do fogo em seu interior. Os incêndios acontecem praticamente nos mesmos lugares no entorno leste da floresta, onde o caboclo e o índio queimam seus roçados em busca de sua sobrevivência, em áreas já desmatadas”.

Para Ana Paula, o momento que o Brasil vive é caracterizado pelo enfraquecimento de políticas públicas permanentes de preservação do meio ambiente. “Estamos vivendo uma emergência climática global e cada vez que vamos negando isso, a gente vai caminhando, dando um passo a mais rumo a um precipício”, enfatiza.

Falta de planejamento e desmatamento

Diante do aumento no número de incêndios registrados no Pantanal e em outras regiões do estado, o governador Mauro Mendes decretou situação de emergência em Mato Grosso, no dia 14 de setembro. A fim de dar agilidade ao processo de mitigação do impacto das chamas, o decreto permitiu que a gestão adotasse ações de reforço na prevenção e combate aos focos de calor e também autorizou, entre outras medidas, a aquisição de bens e materiais mediante dispensa de licitação.

Para Ana Paula, as medidas tomadas pelo governo estadual, assim como as iniciativas do governo federal, vêm tarde. Segundo a entrevistada, o período que compreende os meses entre julho e setembro é caracterizado como o período de queimadas no estado, anualmente, e o decreto de emergência veio em cima da hora por ocorrer há menos de 15 dias do fim de setembro, usual período de declínio de queimadas no estado.

“Os governos, estadual e federal, precisam começar a se preparar antes, porque o que a gente está vivendo agora é o período do enfrentamento ao fogo, mas antes os governos deveriam ter feito um período de planejamento”, comenta a coordenadora do Programa de Transparência Ambiental do ICV sobre o enfrentamento às chamas. “Feito isso, aí sim, realizar o combate e a responsabilização dessas áreas queimadas, o governo precisa identificar os órgãos competentes, identificar onde foi a origem desse fogo”.

Outro fator apontado por Valdiones, e que contribui para o quadro trágico vivido em Mato Grosso, é a degradação ambiental e o desmatamento da Amazônia brasileira, natural produtora e distribuidora de águas que, posteriormente, se tornam chuva por todo o país. “A gente tem uma seca bastante grave hoje no Pantanal, uma seca bastante longa também, mais longa do que o normal, a maior seca das últimas cinco décadas causada por oscilações climáticas e agravada pela degradação que a gente tá gerando na floresta. Essas chuvas que antes vinham e que ajudavam a inundar essa planície não vieram”, explica.

O que diz o Estado

A fim de questionar o avanço das chamas e o aumento dos focos de calor registrados no estado, a reportagem procurou a Secretária de Estado de Meio Ambiente (Sema), que diz ter se articulado com todos os órgãos estaduais e federais de combate ao desmatamento, para enfrentar e combater as queimadas. “No início deste ano o governador editou um decreto criando um Comitê Estratégico de Combate ao Desmatamento e aos Incêndios Florestais (CEDIF), e esse comitê é composto por todos os órgãos estaduais, a Sema, o Corpo de Bombeiros, e também os órgãos federais, o Ibama, o Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual. Esse comitê tem se reunido a cada 15 dias para que a gente possa verificar o que está acontecendo, quais são as circunstâncias atuais do estado, não só do incêndio mas com relação também ao desmatamento”, afirma Alex Marega, secretário executivo do órgão.

Com relação à responsabilização de possíveis infratores por crimes ambientais relacionados às queimadas, Marega diz que só em 2020, a Sema já aplicou 900 milhões de reais em multas. “Esse valor é muito maior do que do ano passado, ano passado foi 600 milhões, e é muito maior do que a média histórica dos últimos 10 anos. Mato Grosso nunca aplicou mais de 300 milhões de reais de multa por ano, e só ano passado foi 600 milhões e esse ano vai passar de um bilhão”.

A Focando também questionou a prefeitura de Poconé, em entrevista, recebendo como resposta que o município, apesar da colaboração do governo estadual e federal, tem precisado utilizar recursos próprios para a contratação de caminhões pipas e brigadistas. “O poder público municipal está atuando de forma direta com recursos próprios, como caminhões pipas, alimentação, hospedagem, que às vezes é preciso trocar de brigadistas. São em torno de 40 a 50 pessoas tendo um gasto em torno de R$ 40.000,00. O governo estadual tem ajudado com o corpo de bombeiros e toda demanda tecnológica. O governo federal disponibilizou o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio)”, diz Danielle Assis Carvalho, coordenadora municipal de proteção e defesa civil do município.

Sobre a situação dos indígenas no Parque Indígena do Xingu, a reportagem procurou o Ibama e a Funai, mas, até o momento desta publicação, não recebemos nenhum retorno.

*Reportagem originalmente publicada em Agência Focando

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Michael Esquer

Bacharelando em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (sand. UDFJC/COL) “Quem não cuida de si que é terra, erra” 🏳️‍🌈