“Até hoje nunca tivemos ajuda de ninguém. Luto pra gente ter”: artesãs falam de dificuldades para manter a memória cultural viva

Pandemia expôs companheiro de longa data de artesãos do São Gonçalo Beira Rio: o desamparo

Michael Esquer
8 min readMay 21, 2021

Por Isadora Dias, Michael Esquer e Rodrigo Dias

“Durante esses quatorze anos, somente nós, artesãos, temos mantido a casa, tudo, a água, a luz, gasto com papel, tudo. Essa foi a primeira ajuda que a gente recebeu até hoje, nunca tivemos ajuda de ninguém, nem do governo, nem da prefeitura, nada. Eu como presidente eu até luto pra gente ter uma ajuda, mas a gente nunca conseguiu”.

Esse é o relato de Dona Alice de Almeida, 74 anos, ribeirinha e presidente da Casa dos Artesãos de São Gonçalo Beira Rio, um dos bairros mais antigos e tradicionais de Cuiabá, sobre o apoio que os ceramistas da comunidade receberam durante a pandemia através da Lei Aldir Blanc — auxílio financeiro do Governo Federal ao setor cultural com o apoio aos profissionais da área que sofreram com impacto das medidas de distanciamento social por causa do coronavírus.

Localizada na região próxima ao Coxipó, a loja se situa no berço de uma população de ribeirinhos que há mais de 14 anos utilizam a cerâmica como ferramenta de materialização de seus modos de vida e tradição. A venda de artesanato e peças utilizadas para a representação da identidade tradicional ribeirinha, ainda encontram ali, a oportunidade de se tornarem também o sustento de várias famílias.

“A melhor coisa que a gente fez aqui no São Gonçalo Beiro Rio foi essa casa de cerâmica, destinado [para] nós vender nosso artesanato, pra vender, colocar os nosso produtos na loja, pra tá vendendo os produtos dos artesãos”, conta a artesã ao relembrar a trajetória construída ao lado dos artistas da sua comunidade.

Resistindo à pandemia

No ano passado, porém, com a chegada da pandemia em Mato Grosso, a associação enfrentou uma grande dificuldade: de portas fechadas devido às restrições de mobilidade por mais de sete meses e sem o apoio do Estado ou do governo, os artesão tiveram, entre grande parte deles, a única fonte de renda interrompida. Dessa forma, o que antes era utilizado como forma de arrecadação, se tornou uma maneira de resistir através da cerâmica.

Alice conta que os principais visitantes da loja eram alunos de escolas e também de universidades, tanto de Cuiabá quanto do interior do estado, esses concentravam-se apenas na visitação do local. Com a suspensão das aulas devido a pandemia, o número de visitantes zerou, hoje não é mais comum receber essas pessoas na Casa do Artesão. Foram sete meses de portas fechadas.

Já na outra ponta os turistas, esses em sua maioria de fora de Cuiabá, eram os responsáveis pela movimentação do fluxo de caixa da Casa do Artesão, ou seja, com as atividades em pleno funcionamento e sem interrupções havia demanda e oferta pelos produtos. O dinheiro conseguido por meio das vendas era dividido entre as artesãs, a distribuição seguia o padrão de acordo com a produção de cada uma. Dona Alice é quem faz o balanço e também a responsável pelos repasses às artesãs. Com a pandemia, esses valores caíram drasticamente.

Peças do acervo de peças de cerâmica da Casa do Artesão de São Gonçalo Beira Rio. (Fotos: Rodrigo Costa)

“A maioria dos artesãos queimavam as suas peças e colocava lá [na Casa do Artesão] pra tá vendendo. Foi difícil, porque a gente não vendeu, a gente deixou de vender, durante sete meses. Antes da pandemia a gente vendia até mais ou menos, mas depois diminuiu bastante. Por mês a gente fazia o balanço … vendia, de mil, mil e pouco, mil e quinhentos, dois mil. Agora, fevereiro, março e abril, foi bem pouco, eu vendi oitocentos reais e teve ceramista que nem vendeu”, explica Dona Alice, comparando o rendimento que a loja tinha com o período golpeado pela pandemia.

Queda nas vendas

No país todo, o impacto causado pela crise sanitária e econômica foi sentido em diferentes segmentos e estratos sociais, porém, com a interrupção de projetos em andamento, dificuldade de manter postos de trabalhos e garantia da renda para profissionais, o setor cultural está entre um dos que mais foram impactados.

Estudo nacional realizado pela Fundação Getúlio Vargas entre maio e junho de 2020 revelou o encolhimento de 31,8% do Produto Interno Bruto (PIB) do setor cultural e economia criativa. Impacto este que continua sendo sentido mesmo com o relaxamento das medidas restritivas em grande parte dos municípios do país, sobretudo, para aqueles que, como associação da qual Alice é presidente, dependem única e exclusivamente dos próprios recursos.

“Tá funcionando normalmente, só que assim, a venda não foi tanto como antes da pandemia, as pessoas chegavam pra comprar, diminuiu bastante. Até hoje tá ainda com poucas pessoas, as pessoas estão vindo, até já aumentou mais um pouco, mas não tá aquela venda como antes da pandemia”.

Tradicional escultura de mulher ribeirinha, parte do acervo da Casa do Artesão. Foto: (Rodrigo Costa)

Mesmo diante das dificuldades que foram surgindo e com perspectivas não tão animadoras para o futuro, Dona Alice ainda pretende fazer de um antigo sonho realidade. Ela deseja construir um local para poder realizar as sonhadas oficinas, que segundo ela poderão alavancar o interesse pelo trabalho que já tem uma marca na comunidade e servir de aprendizado. Atualmente, devido ao pequeno espaço físico da loja, é inviável realizar qualquer outra atividade que não seja a venda de produtos no atual estabelecimento.

“A oficina seria ideal para nós. A gente ia ter mais pessoas, a gente ia ficar mais feliz, porque a gente ia começar trabalhar ensinando e, talvez, teria mais pessoas pra tá aprendendo e ajudando ali na loja”.

Atualmente a loja funciona de segunda à domingo, e a cada dia da semana as artesãs revezam entre si e dedicam um dia inteiro para atender os clientes, efetuar vendas e etc, isso no estabelecimento. A ideia de dona Alice então, com as oficinas, é ter um pessoal maior para somar a atual equipe, que já é reduzida, de modo que possa aumentar a produção e vendas, por exemplo.

A presidente também chama atenção para o fato de que se fosse somente a casa do artesão a garantir a subsistência das pessoas que trabalham diretamente com o artesanato, seria impossível. Isso acontece devido a pouca adesão e desvalorização das atividades da comunidade São Gonçalo, o que consequentemente resulta numa adesão cada vez menor de pessoas dispostas a conhecer o trabalho executado pelo grupo da comunidade. Isso tem resultado direto nas vendas e faz com que outras atividades sejam adotadas como forma de complementar suas respectivas vendas. “Eles [artesãos] mexem com a peixaria também. Agora, aqui só tem uma pessoa que depende mais da cerâmica, mas o resto, tudo ele já tem um outro trabalho, eles têm, tem a peixaria, tem a cerâmica né?”, explica.

Ainda hoje, os valores que são arrecadados com a comercialização dos produtos são impossíveis para garantir às funcionárias um pagamento mensal nos moldes de um salário fixo. Dona Alice explica que a modalidade de pagamento é feita de acordo com a produção individual, isto é, as artesãs recebem somente pelas peças que elas produzem. Isso significa que uma trabalhadora só terá acesso ao valor da venda de seu produto quando o produto for comercializado e a venda concretizada. Desse valor, uma porcentagem vai para a associação, e a outra é repassada para as artesãs.

Com isso, a partir do momento que uma peça de artesanato está numa prateleira disponível para a venda e até que ela saia dali, vendida, esse tempo pode durar dias, um ou dois meses, é imprevisível.

Tradição colocado em risco

As dificuldades já conhecidas e potencializadas pela pandemia colocam em risco a continuidade do trabalho dos artesãos. (Foto: Rodrigo Costa)

Adelina Luís Antunes, 68 anos, mora há 45 anos na comunidade São Gonçalo Beira Rio e desde os 20 anos trabalha com artesanato. Ela conta que aprendeu a moldar peças ainda na adolescência, com a mãe de Alice, a atual presidente da Casa do Artesão.

Adelina ainda conta que a pandemia dobrou a aposta sobre as dificuldades a um trabalho que já é difícil manter em condições normais. A filha mais velha, Maira, de 40 anos, é quem a ajuda com a pintura das peças. Ela ainda cita que boa parte dos filhos vislumbram destinos diferentes do de seus pais, que cresceram com outro pensamento.

“Os filhos querem estudar, querem trabalhar e esse dinheiro nosso num mês pode ser bom, e outro não. A venda sempre foi boa, mas se deus quiser vai voltar como antes”, contou Adelina sobre as mudanças que tem visto ao longo do tempo e o impacto da pandemia.

Ela lamenta que o movimento de agora da Casa do Artesão não seja mais o mesmo de antes da pandemia e que praticamente fadigou durante o período em que esteve isolada se protegendo da contaminação pelo coronavirus. “Ano passado só ficamos em casa, presas, voltamos a trabalhar agora”, conta, se referindo aos 7 meses em que as atividades permaneceram suspensas em virtude da pandemia.

“Não tem como sobreviver só da cerâmica”

Auribella Rodrigues, assim como Adelina, também começou cedo a trabalhar com atividade envolvendo artesanato. Natural do município de Barão de Melgaço (111km de Cuiabá), ela teve influência da mãe artesã para começar a trabalhar assim que a família se mudou para a Comunidade São Gonçalo Beira Rio, isso quando ainda era criança. Pertencente à quarta geração de artistas na família, ela conta que começou a modelar pequenas pecinhas de barro quando tinha 11 anos, mas que só se tornou profissional aos 15.

Com a renda comprometida, Auribela conta que não conseguiu nada com as vendas no período que a Casa do Artesão permaneceu fechada. “Pra dizer a verdade, o único auxílio que a gente teve foi o emergencial, graças a Deus a gente conseguiu. Receber isso ajudou muito”, enfatiza. O desinteresse em ajudar a cultura local, segundo a artista, não veio com a pandemia, mas sim com a dura realidade de que isso ocorre há alguns anos.

Trecho da entrevista de Auribella — Confira aqui

A ajuda financeira por indivíduos que prezam pela cultura cuiabana e dos órgãos governamentais também é pouca, mesmo as pessoas que desejam apoiar e realizar uma espécie de parceria não fornecem um amparo definitivo e suficiente. Sem o apoio necessário para continuar seu trabalho, ela teme que o trabalho de modelagem da cerâmica acabe em alguns anos.

“Não tem como sobreviver só da cerâmica, a rentabilidade é muito pouca”, afirma.

Atualmente, a artesã reside com seu marido e seus dois filhos gêmeos. Além das contas que chegam durante uma pandemia que continua a afetar a renda mensal da família, a interrupção das aulas presenciais na escola das crianças e a dificuldade de seus filhos de acessarem o EAD devido a problemas de conexão da internet, logo se tornaram motivos de preocupação. “A internet aqui é muito falha, não tem como, a gente pega apostila do colégio”, afirma.

Ela, que foi influenciada pela figura materna a trabalhar na cerâmica e pertence à quarta geração de artistas da família, diz que seus filhos não querem seguir a ocupação. O legado da arte ceramista da avó da artesã, que foi passado para mãe, terminará com ela, pois enfatiza, com um semblante triste e de conformação, que não conseguirá passar o legado aos seus descendentes.

Para saber mais sobre a Casa do Artesão de São Gonçalo Beira Rio:

Documentário de Trabalho de Conclusão de curso de Comunicação Social, da Universidade Federal de Mato Grosso: “Conhecendo São Gonçalo Beira Rio”

Ficha técnica:

Roteiro e direção: Eveline Bezerra

Edição: Eveline Bezerra e Moacir Francisco

Personagens: Seu Ivo, Dona Alice, Dona Juraci, Seu Fernando e Dona Silvia

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Michael Esquer

Bacharelando em Jornalismo na Universidade Federal de Mato Grosso (sand. UDFJC/COL) “Quem não cuida de si que é terra, erra” 🏳️‍🌈